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I. INTRODUÇÃO
Pretendemos, neste estudo, analisar como é o tratamento prestado ao autista adulto na rede de atenção básica do SUS. Sabemos o quanto é necessário que ocorra uma articulação entre a saúde mental e a atenção básica, porém existem alguns entraves que impedem essa articulação. Considerando a complexidade do quadro do autismo, ainda mais se tratando do autista adulto, percebemos a dificuldade de acolhimento e tratamento dessas pessoas na atenção básica. Na verdade, sabemos que essa situação ocorre diante da maioria dos casos que envolvam alguma questão de saúde mental.
Para isso, realizamos um resgate teórico articulando os princípios da política e da clínica que norteiam tanto as ações de saúde mental quanto do quadro específico do autismo. Tendo em vista que a política é para todos e a clínica é para cada um, pensamos na psicanálise como uma das possibilidades de tratamento para o autismo.
O interesse pelo tema surgiu devido à prática como AT (acompanhante terapêutico) de um autista adulto, visto que encontramos dificuldade de inseri-lo na sociedade em razão de ser um caso mais fragilizado, visto que ele possui histórico de longa internação em hospital psiquiátrico. Constatamos ainda a dificuldade de ele receber acolhimento e tratamento na atenção básica, tanto para tratar questões voltadas para saúde mental quanto para outras áreas da saúde. Muitas vezes, isso acontece devido ao despreparo e desinteresse de alguns profissionais em oferecer atendimento a pessoas com algum transtorno mental.
Saúde Mental na Atenção Básica: um vínculo necessário.
No Brasil, a política de saúde mental teve início da década de 80 com a Reforma Psiquiátrica, que pode ser entendida como um processo político e social complexo que propunha modificações de práticas, saberes, valores sociais e culturais. (BRASIL, 2005).
Segundo Rinaldi (2007), foi a partir do movimento da reforma psiquiátrica no Brasil que surgiu o campo da saúde mental, no qual passou a ter lugar outros saberes, profissionais e serviços e não apenas a psiquiatria e o modelo manicomial.
O campo da saúde mental - assim chamado na tentativa de positivar um campo antes negativizado pela cultura asilar que sob a égide do saber médico objetificou o sujeito, abolindo-o sob o rótulo da doença mental – é hoje um campo em construção, marcado pela pluralidade e heterogeneidade de saberes e práticas. (RINALDI, 2007, p. 2).
A Reforma Psiquiátrica visa ainda à mudança na lógica assistencial, que seria a substituição dos hospitais psiquiátricos pelos serviços substitutivos na comunidade. No entanto, apenas em 2001 foi aprovada a Lei 10.216 que garante os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e que redireciona o modelo assistencial. (BRASIL, 2013a).
Os serviços substitutivos surgem com intuito de mudança no modo de cuidado das pessoas com transtornos mentais, esses serviços passariam a ser de base territorial, ou seja, mais próximo do contexto familiar e social da pessoa. Além disso, é importante privilegiar as ações de saúde mental na atenção básica. (BRASIL, 2009). A noção de território não se restringe apenas a limites geográficos, mas principalmente aos recursos e saberes daquela comunidade. (BRASIL, 2005).
A rede de saúde mental deve conter vários dispositivos, dentre eles ações de saúde mental na atenção básica, centros de atenção psicossocial, residências terapêuticas, centros de convivência e cooperativas de trabalho.
Tenório (2007) ressalta a necessidade de tratar os novos problemas advindos do progresso da reforma psiquiátrica, como a importância da articulação de fato entre os programas de saúde mental com a atenção básica.A atenção básica deve ser a porta de entrada ao sistema de saúde, inclusive das pessoas que necessitam de algum cuidado em saúde mental. Como as ações da atenção básica são feitas em um determinado território, isso facilita o conhecimento das histórias de vida das pessoas pela equipe de saúde. Dessa forma, deve-se considerar o individual e o social do usuário a fim de atendê-lo integralmente.
O cuidado em saúde mental deve ser realizado por todos os profissionais de saúde, o importante é que fique clara a noção de território e vínculo dos profissionais com os usuários. (BRASIL, 2013a).
As intervenções feitas pelos profissionais devem se voltar para as particularidades de cada caso, já que é um momento de invenção e construção com o usuário. "As intervenções em saúde mental devem promover novas possibilidades de modificar e qualificar as condições e modos de vida, orientando-se pela produção de vida e de saúde e não se restringindo à cura de doenças." (BRASIL, 2013a, p. 23).
Segundo Campos e Gama (2008), existe uma grande demanda pertencente à saúde mental na Atenção Básica, os autores elencam as principais dificuldades no acolhimento e tratamento desses usuários.
A falta de diretrizes por parte do Ministério da Saúde, a falta de preparo técnico do profissional, as precárias condições de trabalho, a falta de investimento por parte dos gestores, dentre outros, fazem com que a demanda de Saúde Mental não encontre uma escuta qualificada e muitas vezes sejam tratadas apenas com medicação, produzindo-se assim uma medicalização do sofrimento. (CAMPOS & GAMA, 2008, p. 212).
Muitas vezes os trabalhadores da saúde não sabem como lidar com os casos de saúde mental, trazendo certo desconforto e impotência diante da expectativa de cura em relação a esses casos. "A dificuldade de lidar emocionalmente com esses encontros pode propiciar distanciamento ou resistência ao trabalho com a saúde mental." (BRASIL, 2013a, p. 25).
Devemos ter cuidado para não normatizar as nossas intervenções e ficarmos atentos para não buscarmos somente a minimização da sintomatologia. Isso porque as intervenções devem levar em consideração a história de vida e o contexto do usuário.
Mesmo sabendo da relevância da articulação da saúde mental com a atenção básica, esbarramos na carência de profissionais e na falta capacitação para eles. Urge a necessidade de políticas e estratégias que valorizem a promoção de saúde, a equidade, a integralidade e a cidadania. (BRASIL, 2004).
Tendo em vista isso, foram criadas duas ferramentas, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF). A primeira visa à modificação do sistema tradicional de saúde, tendo como princípios, conforme aponta Carmagnani e Santana citado por Campos e Gama (2008), o trabalho multidisciplinar, o trabalho no território, o vínculo entre usuários e profissionais, foco na prevenção de doenças e promoção da saúde.
Já o segundo (NASF) foi criado com o propósito de ampliar a abrangência, as ações e a resolutividade da atenção básica. (BRASIL, 2009). Dentre outras funções, prestar apoio matricial¹ em saúde mental. O apoio matricial incentiva o trabalho interdisciplinar e a clínica ampliada, prezando outras dimensões (social, cultural, subjetiva) dos usuários. (BRASIL, 2004). Em relação à saúde mental, o NASF deve fomentar as ações que já são feitas pela atenção básica proporcionando a participação do usuário. (BRASIL, 2013b).
Os centros de atenção psicossocial (CAPS) devem realizar o acolhimento e o tratamento das pessoas com transtornos mentais – principalmente nos momentos de crise –, regular a rede de saúde mental e oferecer também o apoio matricial à atenção básica. (BRASIL, 2004).
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¹ "O apoio matricial é uma metodologia de trabalho que pretende oferecer tanto retaguarda assistencial como suporte técnico pedagógico às equipes de referência." (CAMPOS apud CAMPOS & GAMA, 2008, p. 214).
Tendo em vista os princípios da Reforma Psiquiátrica e o surgimento do campo da saúde mental, considerando as mudanças políticas e clínicas que surgiram a partir daí, a questão que surge é: mas e quanto ao autismo? Estaria ele incluído no rol das políticas de saúde mental?
Autismo: Algumas considerações sobre política e clínica.
Couto (2009) evidencia um novo ponto de discussão em relação ao campo da saúde mental, a questão frente à complexidade do autismo, passando a ser considerada a síndrome do século XX.
A primeira concepção do que seria o autismo foi feita por Bleuler em 1916, contudo ele aborda esse tema relacionando à esquizofrenia. "O autismo é definido como perda de contato com a realidade acarretando uma impossibilidade ou grande dificuldade para se comunicar." (RIBEIRO, 2013, p. 23).
No entanto, as primeiras considerações sobre o autismo como uma síndrome surgiram nos anos de 1940, por dois médicos Leo Kanner e Hans Asperger. Kanner caracterizava o autismo principalmente como uma dificuldade das crianças em se relacionar com as pessoas e como meio desde a tenra idade. Asperger associava o autismo, dentre outras características, como um transtorno no relacionamento da pessoa com o meio em que vive. (BRASIL, 2013b).
No que se refere à assistência do autista, conforme nos aponta Couto, eles foram excluídos durante a maior parte do século XX do campo da saúde. Sua assistência era priorizada na área educacional e poucos tinham acesso ao tratamento na saúde metal, quando eram realizados se fazia normalmente em ambulatórios e em hospitais psiquiátricos ou universitários, tendo como foco o tratamento medicamentoso. (COUTO apud BRASIL, 2013b).
Em 2009, foi publicada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em que são consideradas as pessoas que possuem impedimento físico, mental, intelectual e sensorial de longo prazo que trazem prejuízos na sua convivência em sociedade.
Em 2012, após forte debate, foi aprovada no Brasil a Lei 12.764 que estabelece a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo, caracterizando aqueles com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) como pessoas com deficiência.
O campo da saúde mental acolheu as pessoas com o diagnóstico de deficiência mental em seu rol de ações, mesmo colocando em questão essa terminologia². Visto que "nenhuma condição ou diagnóstico pode justificar a perda de liberdade". (BRASIL, 2013b, p. 17).
Para que o cuidado em saúde mental dos autistas possa ir de encontro aos princípios e diretrizes da saúde mental, é necessário que cada ponto da rede se responsabilize em atender às necessidades dessas pessoas de acordo com as suas particularidades. "A grande complexidade das questões envolvidas nas diversas formas de autismo exige que a ética do campo público seja ao mesmo tempo rigorosa e flexível para dar acolhida a diferentes concepções sobre esse quadro." (BRASIL, 2013b, p. 32).
Deve ser um trabalho em rede, que inclua não somente os serviços de saúde, mas todos os espaços da cidade, tendo em vista a autonomia dessas pessoas.
A necessária ampliação e diversificação das ofertas devem, além de apostar na construção de autonomia das pessoas com TEA, apoiar sua família para promoção de sua própria saúde, com investimentos na ampliação e sustentação de sua participação nos espaços sociais e coletivos. (BRASIL, 2013b, p.95).
Jerusalinsky e outros (2013) apontam que em relação ao termo autismo existem vários critérios classificatórios, mas todos admitem a dificuldade do autista em estabelecer laço com os outros. Tendo em vista isso, é importante que o tratamento opere nessa relação, possibilitando que o autista consiga a sua maneira conviver nos vários espaços sociais. Contudo, ante essa afirmação, cabe interrogar em que medida a psicanálise poderia, a partir de seu saber, contribuir na discussão acerca do tratamento e da inclusão do sujeito diagnosticado como autista?
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² Referindo-se à participação dos movimentos organizados internacionais do campo da saúde mental na construção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em que apontam a contradição da terminologia deficiência mental. "A terminologia "mental disability" e "psychosocial disability" vem sendo utilizada para se referir a pessoas que tenham recebido um diagnóstico de saúde mental com comprometimento de longo prazo, e que vivenciam fatores sociais negativos, incluindo o estigma, a discriminação e exclusão." (DREW et al. apud BRASIL, 2013b, p. 17).
Contribuições da psicanálise acerca do tratamento e inclusão do sujeito diagnosticado como autista.
Como aponta Borsoi (2008), não devemos pretender que a psicanálise frente aos outros saberes possa dizer tudo, trata-se de manter a sua diferença, principalmente no que diz respeito a sua ética.A ética não é no sentido da moral, da norma, do padrão, pelo contrário, é da ordem da particularidade do sujeito. Dessa maneira, o tratamento dado a esse sujeito não pode ser universal, pois cada um possui a sua singularidade, sua diferença. A psicanálise se dirige ao sujeito do inconsciente, este que estabelece relações com seu gozo e seu sintoma e é dessa maneira que ele se organiza e estabelece o laço social.
Já que para psicanálise "o sintoma não é uma falha a ser suprimida e sim uma resposta do paciente, partimos desse sintoma para a intervenção, propiciando, por meio do tratamento, um contexto em que novas respostas possam advir." (JERUSALINSKY et al., 2013, p.31).
Segundo Berta e outros (2013), para a psicanálise, o autismo está no campo das psicoses. "Os autistas, por falta da metáfora paterna, não possuem a norma fálica que lhes permita certa margem de manobra em relação à demanda do Outro." (RIBEIRO, 2013, p. 31). Dessa maneira, o Outro é considerado extremamente intrusivo e excessivo para o autista.
Como afirma Ribeiro (2013), a psicanálise se orienta tomando o autismo não como um déficit cognitivo, como uma fixação em um estágio pré-verbal do desenvolvimento ou como efeito de uma falha nas relações familiares, mas sim que os fenômenos apresentados pelo autista são na verdade uma resposta frente ao Outro.
A psicanálise considera o autista como um sujeito – mesmo que não falem são afetados pela linguagem –, por isso que a psicanálise pode ser considerada uma das possibilidades de tratamento para o autista.
Para que o autista possa se constituir como sujeito, ele realiza um trabalho no sentido de barrar o gozo do Outro, isto é, para que ele possa sair dessa posição de objeto de gozo do Outro. Podemos ver esse trabalho que os autistas fazem na sua relação com o outro, quando não atendem ou não fazem demanda alguma, em seu isolamento extremo, quando se fixam em suas rotinas, na sua relação com os objetos, nas estereotipias e na ecolalia. "Sabemos que o tratamento dos ditos autistas toca no limite do insuportável: deparar com alguém que recusa um laço com o outro." (BERTA et al., 2013, p.106).
É fundamental que no trabalho com o autista seja considerada a sua singularidade, o aumento das oportunidades de inserção social e comunicação, além da diminuição do sentimento de angústia e invasão. Trabalhar tendo em vista as suas produções e as suas preferências, esse é o caminho para que possam surgir outras possibilidades.
O que direciona a clínica psicanalítica é o impossível de se universalizar, por isso é fundamental não pensar no autista apenas como um cidadão com direitos, sem considerar as particularidades de cada caso. Ao estabelecer normas e tratamentos prévios para os autistas, podemos correr o risco de fortalecer sua segregação, pois estamos indicando o quanto eles se encontram fora da norma.
O desafio para psicanálise seria o de ouvir esses sujeitos que não verbalizam ou têm grande dificuldade de verbalizar, "[...] o objetivo geral da Psicanálise com sujeitos autistas é o de minimizar suas angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de laço social." (BERTA et al., 2013, p.106).
Para psicanálise, o trabalho a ser realizado com o sujeito autista, independente de ser uma criança ou adulto, deve ser de acompanhá-lo nesse trabalho que ele realiza para advir como sujeito. A partir daí, podemos possibilitar a reinserção desse sujeito de acordo com o que é proposto pela reforma psiquiátrica.
Considerações finais
Como foi visto, a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, surgiu o campo da saúde mental com o objetivo de transformar as questões políticas e clínicas no tratamento das pessoas com transtorno metal.
Agora, após alguns anos de avanço da reforma, percebemos a necessidade de articularmos a rede de atenção básica, que é a porta de entrada preferencial do SUS, com a rede de saúde mental.
Mesmo sabendo da grande demanda de saúde mental chegando à atenção básica, alguns impasses vão sendo colocados, como a falta de estrutura, as precárias condições de trabalho, a falta de capacitação e, principalmente, o desinteresse dos profissionais em acolher essa demanda.
Decidimos focar esse trabalho em um público específico, o autista adulto, devido ao fato de o autismo ser considerado a síndrome do século XX. A preocupação em criar políticas de assistência à saúde e tratamento na saúde mental em relação ao autismo é relativamente recente, percebemos que há ainda um longo caminho a ser percorrido.
Pensamos a psicanálise como uma possibilidade de tratamento para o autista, pois ela considera as particularidades de cada caso para assim traçar as estratégias tanto clínicas como de reinserção desses sujeitos.
No decorrer desse estudo, constatamos que existem vários trabalhos voltados para o autismo infantil, porém pouco tem se falado sobre o autista adulto. Para que possamos elucidar mais essas questões, dos impasses dos trabalhadores da atenção básica em lidar com as questões de saúde mental e de como efetivamente o tratamento prestado ao autista adulto tem sido realizado nesse ponto da rede, se existem ações específicas tanto nas políticas de saúde quanto nas demais para essa faixa etária, é preciso que mais estudos sejam feitos para que possamos construir saídas e avançarmos nessas questões.
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Recebido em: Novembro de 2015
Aceito em: Julho de 2016
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