. Resumo: Este texto enfatiza que há uma dessimetria entre a política da psicanálise, que visa às singularidades das soluções encontradas pelo sujeito, ao lidar com os impasses do gozo, e a mestria dos outros laços sociais, especialmente a do discurso da ciência, que se sustenta na forclusão do sujeito. Para isso, vale-se da argumentação de que a política da singularidade deve ser orientada pela vertente metodológica da psicanálise, qual seja, a de mostrar que se a precariedade do simbólico é condição importante para o desejo, para o aparecimento do real e da verdade do sujeito, ela o será também para a pesquisa. Portanto, a psicanálise não pode desvirtuar-se de modo a se encaixar nas exigências dos ideais científicos. Por isso, cada pesquisa em psicanálise possibilita a subjetivação de seu método e de sua teoria, atualizando a castração vivenciada na experiência analítica com a linguagem.
. Palavras-chave: política da psicanálise, método psicanalítico, singularidade, contingência, subjetivação.
. Abstract: The text stresses the asymmetry between the psychoanalytical policy which aims at the singularity of the solutions found by the subjects as they deal with the impasses of joyousness and the mastery of other social ties, especially that of the discourse of science, which relies on the subject´s forclusion. The text argues further that the policy of singularity must be sustained vis-à-vis the methodological pathway of psychoanalysis, i.e., that of showing that if the precariousness of the symbolic is an important condition for desire, the emergence of the real and the truth of the subject, it will be so for research. Therefore, psychoanalysis cannot afford to go astray so as to fit the requirements of scientific ideals. For this reason, each research endeavor in psychoanalysis, including writing as part of the production of knowledge, makes possible the subjectivation of their method and theory and actualizes the castration undergone in the analytical experience with language.
. Key-words: psychoanalytical policy, psychoanalytical method, singularity, contingence, subjectivation.
. A psicanálise é uma prática construída por Freud no período em que ele tentou estender os domínios da ciência moderna para os problemas do sujeito, “trazendo à luz a dimensão do inconsciente mediante a escuta da verdade que abriga o erro” (TEIXEIRA 2002, p. 21) e o inesperado. O que parecia absurdo e aparentemente distinto, como sintomas, sonhos e atos falhos, ganhou inteligibilidade e coerência interna a partir do conceito de inconsciente. Freud elevou o inconsciente à categoria de objeto de conhecimento científico apesar da existência do inconsciente depender da presença do clínico e/ou do pesquisador. Ele desenvolveu sucessivas técnicas para a abordagem de tal objeto em função de suas características. Se a verdade do sujeito se revela precariamente pelo erro e pelo desejo de alguém em querer escutá-lo, a técnica e a teoria devem ser coerentes com aquele objeto. No caso, um objeto de conhecimento tão peculiar, que foi definido pelo negativo: o que não se dá a conhecer. Apesar disso, Freud sustentou a pesquisa desse objeto, utilizando-se do procedimento padrão de construção da teoria, isto é, pelo conceito, e demonstrou a susceptibilidade do inconsciente à ação do real. Ele assim o fez em sua clínica e na teoria, ao criar sua mitologia pulsional, dada a impossibilidade de o inconsciente ser apreendido pela estratégia puramente conceitual do procedimento científico.
. A psicanálise veio, assim, a esclarecer o discurso da ciência, ao demonstrar o que do objeto do conhecimento não se dá a conhecer e como o discurso científico funciona pela eliminação do sujeito. Como o fim da ciência é exatamente o de objetivar, deixar o sujeito reduzido a objeto de um saber pré-estabelecido, seu discurso tornou-se o exemplo de uma razão que justifica a dominação e o controle da vida. A psicanálise, por sua vez, apóia-se nesse discurso, já que ela é condicionada internamente pela ciência, mas procura introduzir nele o sujeito que foi ejetado para dar consistência ao saber. Ela mantém com a ciência uma relação intrínseca, mas sustenta propósitos éticos diferentes.
. Nesse sentido, a situação da psicanálise pode parecer paradoxal. Ela é fruto do corte da ciência moderna, mas não pode se constituir em “abrigo para a ciência” (LACAN, 1974/1988), pois, se assim fosse, ela desapareceria como clínica, já que seus pressupostos éticos estariam eliminados. Trata-se, então, de um corpo do conhecimento que, ao mesmo tempo, se constitui como um método de pesquisa sobre a subjetividade, uma teoria e uma forma de tratar as complexas questões introduzidas no campo da ética pelo real que causa o desejo. São questões que não foram simplesmente inventadas pela teoria; têm, antes, existência concreta, pois foram trazidas para a clínica por aqueles que buscam saídas para os impasses encontrados entre as suas expectativas e aquelas do discurso social. A psicanálise é, assim, uma prática apoiada em princípios éticos, que demonstra o modo como cada sujeito dissolve o aparente paradoxo contido na relação entre a estrutura de um saber definido a priori, seja o da teoria ou o do analisante em associação livre, e a solução contingente encontrada como saída para os impasses.
. A psicanálise revela como a linguagem e o gozo que condicionam a particularidade de cada um têm regimes definidos a partir do Outro. O sujeito, por se constituir pelo significante que lhe é atribuído pelo Outro, já nasce estrangeiro, descentrado de uma coincidência consigo mesmo (MARINÉ, 2006). A alteridade é, assim, uma característica própria do significante. Isso significa que o inconsciente é o discurso do Outro, isto é, um discurso que funciona na determinação do sujeito antes que este se aproprie dele. Exatamente por se constituir como discurso do Outro, como sede dos valores e dos comandos de uma determinada cultura, o inconsciente se revela como um laço social diferente em cada momento da civilização. Em cada momento simbólico podemos ter produções discursivas diferentes, as quais determinam posições subjetivas diferentes. Decorrentemente, tratar das questões do sujeito significa, também, a possibilidade de ler os efeitos e as características do controle social concretamente presente. É por isso que a resposta clínica a ser dada pela psicanálise varia com o passar do tempo, pois seu interesse é proporcionar que cada sujeito construa um modo próprio de lidar com os impasses impostos pela formação discursiva daquele momento da civilização. Isso significa que a psicanálise se posiciona politicamente, por ser, de fato, um laço social que se dispõe a tratar esses impasses como efeitos de um dado movimento simbólico. O desejo do analista não é puro, nem mesmo neutro (BROUSSE, 2002). Ele já traz uma marca política, pois visa a alterar os efeitos tirânicos do significante que colocam o sujeito em sofrimento. Devido a isso, a psicanálise procura ser uma clínica criativa e inventada a partir de cada analisante.
. Vale ressaltar que essa opção, por si mesma, denuncia uma política da psicanálise diante das outras formas de laço social: insistir em sua função clínica.
. Como podemos definir, então, a política da psicanálise? Penso que é possível dizer, a partir da proposta de Maria Fernanda Machado (MACHADO, 2006), que a política é um operador na sustentação dos princípios éticos da psicanálise. Operador em sentido matemático (CASTRO, 2006, p.115), isto é, o índice de uma operação que “se efetua sobre uma variável ou uma função”. Nesse caso, a presença real do analista como suporte da causa do desejo, e não um índice de regras simbólicas preestabelecidas.
. Antes de responder às questões apresentadas, é necessário esclarecer algumas diferenças conceituais, porque queremos enfatizar mais alguns aspectos da política, embora a ética que a sustenta seja uma condição inerente.
. Resumidamente, podemos afirmar que a ética da psicanálise visa à singularidade do sujeito, sua particularidade de gozo e desejo, contra qualquer pretensão universalizante dos outros discursos. O que é compartilhado por todos, definido pelo senso comum e funciona de acordo com o discurso do mestre não se coaduna com a psicanálise. Há aí uma dessimetria entre o regime de exceção do sujeito e a mestria que define o que seria melhor para todos, produzindo o trauma e a marca do trágico, que precisam ser trabalhados em análise. Há um conflito de interesses políticos que pode ser dirimido e subjetivado a partir de um trabalho com os significantes “sempre estrangeiros” que exercem mestria sobre a subjetividade. Podemos dizer que a política da psicanálise parte do não-todo e até pode catalogar ou classificar modos de gozo ou padrões de sintomas, a partir do singular. Vemos isso claramente na própria elaboração da psicanálise, feita a partir da construção de casos clínicos singulares e elevados à condição de paradigma de cada uma das formas de estruturação subjetiva. A saída única efetuada por cada analisante permite a leitura da mestria da razão dominante a partir da singularidade, mas a direção contrária – a de impor uma solução universal – seria arbitrária.
. Essa pretensão é estendida também para outros espaços além do consultório, e mesmo que a psicanálise não se realize em instituições da mesma forma como ocorre em uma psicanálise pura, o analista busca o “tratamento possível”, ancorado nessa política da clínica sustentada pelo regime da falta-a-ser daquele que se faz como causa do desejo.
. Se essa é a condição básica para o desejo, é a partir dela que o analista deve consolidar sua política de intervenções, seja na situação clínica, seja nas instituições.
. Podemos formular, então, a partir da afirmação de Foucault, em uma entrevista sobre Lacan, de que “a influência que se exerce não pode ser jamais um poder que se impõe” (FOUCAULT, p.1024), que a política do analista deve ser a da recusa em exercer o poder a ele conferido e até mesmo demandado pelo paciente . Somente na abstinência do exercício do poder e na sustentação da causa do desejo, por meio da presença real do analista, é que o analisante pode ser induzido a um movimento de criação de saídas próprias para seus impasses. Em outras palavras, o analista “conduz a análise sob a condição de abster-se do gozo de sua condição egóica” (MASSARA, 2006, p.47), de modo a permitir a invenção por parte do analisante. Mesmo que recorra ao discurso do mestre, ele o faz taticamente, pois em última instância o analista visa ao giro dos discursos e ao agenciamento pela causa do desejo. A partir da falha que permite essa rotação dos discursos, ele opera em favor da contingência, evitando a redução do sujeito a um caso particular do saber universal da teoria.
. Como esse efeito só é possível a partir dos significantes da história do sujeito, não é eficaz o analista atuar com base em seus preconceitos ou a partir dos significantes da teoria. Ou seja, não existe a metalinguagem, uma linguagem apropriada, construída pelo Outro, que diga a verdade sobre a verdade do sujeito. Apenas pela experiência com os próprios significantes de sua história o sujeito pode construir um saber que se posicione como sua verdade, única, intransferível e apreendida nos atos falhos, no instante do fracasso da tentativa de se verificar pleno, representável.
. Assim, dentro dos princípios da arte da guerra (como disse Freud, estamos em um campo de batalha contra a neurose do paciente), a tática varia em cada situação particular. A estratégia da transferência pela via da suposição de saber (e a conseqüente atribuição de poder ao analista), a política da falta-a-ser (se a pensarmos pela via da constituição simbólica ou do desejo), traduzível em uma política da criação a partir do sinthoma, que, por sua vez, confere ao analista um modo de lidar com o acaso e a contingência (caso a pensemos pelo saldo de gozo de uma análise), mantêm-se ainda no horizonte.
. Brousse (2002) afirma que, dada a estrutura do discurso do analista, agenciada pelo objeto, causa do desejo, a psicanálise será sempre politicamente incorreta. Seus modos de operação com os impasses do mal-estar são diferentes das propostas da ciência e da religião, discursos dominantes na atualidade. A psicanálise, ao se posicionar pela implicação do sujeito em seu ato, caminha em direção contrária ao que o senso comum, ditado por uma época de ciência e de religião, exige. Aforisticamente, podemos afirmar que fracassar diante do sucesso da religião e da ciência é, ao contrário, seu “amargo triunfo”.
. Essas particularidades do discurso analítico face aos que predominam na contemporaneidade derivam em algumas questões: a constatação de que a psicanálise deve se preservar a partir da clínica, e não se abrigar na ciência, permite deduzir que ela não comporta a possibilidade de fazer pesquisa? Seu modo de pesquisa também se constituiria como exceção?
. Uma política de pesquisa para a psicanálise: legitimação e subjetivação do método e da teoria
. Lacan, diferentemente de Freud, começou sua trajetória almejando a “publicação de monografias exaustivas sobre um caso para testemunhar a verdade do sujeito” (LAURENT, 2003, p. 71), adotando, só depois, a “coerência do nível formal onde o sintoma se estabelece”. Primeiramente, ele seguiu o método da ciência normal, mas depois ele adota o próprio método da clínica psicanalítica. Assim, Lacan passa a buscar uma matriz lógica e isola a estrutura que indica a pertinência de um sintoma a uma dada classe, que indica a maneira como os elementos marcantes da vida de um sujeito se repetem, permutam-se, etc. Esclarece, assim, a ação dos significantes e sua combinatória, a partir de significantes fundamentais que adquirem o valor do falo, bem como o modo como a “estrutura formal gira em torno de um impossível” (LAURENT, 2003, p.73), chamado de S de A/. Essa lógica só foi estabelecida porque um sujeito a declinou em um divã, e é exatamente por isso que para Lacan a estrutura só interessa na medida em que um sujeito a experiencia e a revela. Lacan adotou, então, a matematização da ciência moderna e efetuou um deslocamento da historia do caso para sua lógica, para uma redução a elementos mínimos cuja ação evidencia a repetição e a conseqüente evitação do impossível, a partir da vivência de um sujeito. Ele fez com a teorização e com a construção do caso clínico aquilo que um analisante faz em análise.
. Nesse sentido, Lacan deu um passo à frente diante da postura científica de Freud e tentou tornar a teoria e a técnica mais coerentes com esse objeto que não está naturalmente dado, que depende de uma escuta e de um ato. Ele criticou o uso do conceito como descritor da realidade e o transformou em significante. Realizou, assim, uma verdadeira infração da função conceitual e adotou a estrutura do chiste como modelo. Assim, os conceitos foram destituídos de sua capacidade simbólica de apreender o objeto e funcionar como uma metalinguagem que diga a verdade do sujeito. Os conceitos foram, então, transformados em significantes, pois só podem ser validados em sua função principal se forem experienciados por um sujeito particular, e seus efeitos de verdade devem ser verificados por um a um dos sujeitos que os pronunciam.
A construção dos casos clínicos, a partir das contingências das histórias e das enunciações dos sujeitos, foi, assim, a maior ferramenta metodológica para a elaboração da teoria e também para o questionamento constante das formulações psicanalíticas pelos dados obtidos na clínica.
Contudo, Lacan não hesitou em lançar mão de outras disciplinas para definir o fazer do analista, sem deixar que a psicanálise se transformasse em abrigo para a ciência. Assim, da etologia à matemática, passando pela lingüística, antropologia e literatura, ele recolheu conceitos, identificou seus limites e alterou suas definições a partir do que a psicanálise trazia de novo para o campo científico. Chegou, por exemplo, a utilizar o experimento pavloviano como forma de esclarecer a força do desejo do Outro. O cão saliva porque Pavlov assim o quer (e a saliva é a resposta invertida da demanda de Pavlov!). Pavlov é o sujeito que está representado entre um som e a saliva do cão! Nada mais eficaz para demonstrar a força estrangeira do significante do Outro como um experimento de reflexos condicionados!
. Nesse sentido, Lacan foi um pesquisador, um analisante – e não um analista –, inquirindo os significantes do Outro, tenham eles ou não o estatuto de conceito. Como qualquer um de nós deve fazer em análise, Lacan foi um mestre na utilização daquela lógica de redução a elementos mínimos, tanto na condução das análises quanto na adequação da teoria a seu objeto. Ele mostrou que o objeto da psicanálise exige uma teorização a-conceitual e um modo de fazer pesquisa que, naturalmente, escapam do modelo acadêmico-científico normativo.
. Apesar de suas diferenças em relação aos padrões acadêmicos, a psicanálise está presente nos cursos de pós-graduação e os mestrandos e doutorandos se dispõem a demonstrar aspectos herméticos das conclusões extraídas pelos grandes autores, adotando o mesmo método.
. Interessante notar que se trata de um espaço completamente diferente daqueles laboratórios das ciências convencionais. Nas pesquisas de orientação psicanalítica, os alunos são movidos por questões que lhes tocam como sujeitos. Não é possível ao orientador sugerir a tese a ser demonstrada, porque a subjetivação da teoria determina o tema, a hipótese, e o modo como ela será verificada. O aluno freqüentemente descobre o que queria esclarecer após começar a escrever e se surpreende com o valor da escrita na produção do saber. A formalização exige novas redações e pesquisas, e os obstáculos que surgem são pessoais e intransferíveis. O pesquisador está presente na investigação e conduzirá sua pesquisa da mesma forma que um analista conduz as análises, isto é, de acordo com a maneira como finalizou a sua própria análise.
. A escrita tem autonomia e produz um caminho insuspeitado no início. Diferentemente de outros campos de saber, a linguagem e a escrita não são apenas instrumentos de descrição da realidade, elas criam a realidade. A escrita surpreende quem se defronta com ela porque é o próprio campo da contingência, do que poderia ser de outra forma, do imprevisto. Não é eficaz no caso da condução de uma pesquisa, e é anti-ético no caso da condução de uma análise, partirmos de regras ou de procedimentos rigidamente pré-estabelecidos, de caracterizações e quadros clínicos antecedentes, porque o sujeito em questão ditará o percurso de seu trabalho. Há equivalência entre o lugar do pesquisador e o do analisante e, por isso, Lacan afirma que o discurso da histérica se assemelha ao da ciência. No caso dos estudantes, vemos, por exemplo, aqueles que querem estudar anorexia, mas descobrem, após o mesmo procedimento de redução efetuado por um paciente em análise, que esse assunto é apenas um recurso para estudar o desejo da mãe. Outros estudam a teoria dos discursos, mas percebem, após questionar a lógica de sua questão, que se interessam realmente é pelo estatuto do ato analítico. Alguns pretendem entender aspectos da psicose, mas a tese versa, de fato, sobre manifestações transferenciais ou limites da psicanálise. Outros querem estudar, ainda, a moda, mas o foco é o lugar do vestuário na sustentação da máscara da feminilidade, etc. Todas essas escolhas dependem de questões pessoais e da forma como podem limitar a intenção dos pesquisadores. A tese é, assim, descoberta a posteriori, porque há um sujeito envolvido, e não apenas um técnico forcluido pelo discurso que só pode pesquisar um problema exigido pela teoria.
. Ao lado da clínica como política de defesa do sujeito na contemporaneidade, vimos argumentar, também, sobre a importância de defender a inerente vocação científica da psicanálise para a oxigenação da comunidade analítica (LACAN 1964/1998). Além disso, é importante legitimá-la no campo acadêmico e cientifico até mesmo para questioná-lo, para esclarecer seus pressupostos. É de suma importância demonstrar o efeito sujeito, e penso ser a psicanálise o melhor viés epistemológico para tal, pois ela explicita a postura mais radical da ciência moderna. Sua coerência teórica, técnica e metodológica incluem o deslocamento de uma essência em favor da absoluta contingência, não pressupõe qualidades pré-existentes para o sujeito (TEIXEIRA, 2000), matematiza pelo uso da letra, tanto nas suas formulações quanto no seu papel criador na escrita, coloca-se à prova, reescrevendo o que a contingência refuta, etc.
. A pesquisa a partir do real da ciência e da psicanálise
. A psicanálise quer argüir qualquer obstáculo que tampona a falta-a-ser e impede o surgimento de um sujeito, fazendo supor uma essência qualquer. Ao contrario, aquilo que se concebe imaginariamente como essência ou qualidade subjetiva seria uma cicatriz do contingente (MILNER, 1996, p.52). Enquanto a ciência parte, por princípio, de uma infinita possibilidade de o mundo ser sempre outro e, a partir daí, institui o necessário pela literalização, a psicanálise afirma, como equivalente a esse princípio da ciência, que o encontro ao acaso com o Outro produz a inscrição corpórea do gozo sob a égide da letra. A literalização é o procedimento formal da ciência e, para nos, é o modo como o significante se torna objeto, o litoral, o elemento que dá consistência ao real para um sujeito particular. O que se inscreve como letra dá corpo ao sujeito e produz saber na análise e na teorização que ele venha a produzir.
. É fácil entender porque nossa ciência é tão enigmática para a Academia. Como caracterizar um método que acolhe radicalmente a contingência, já que o analista não se forma apenas por meio da aprendizagem da teoria e do domínio dos conceitos? Como um profissional pode depender de um saber a-conceitual? Ou melhor, como dominar um método que inclui, necessariamente, o campo da contingência, não apenas na base, como em toda ciência, mas no constante questionamento do regime do necessário para que o sujeito se revele como exceção? Mais ainda, a contingência não é o que revela o real a ser demonstrado pelos analistas?
. Em nosso caso, o alcance dos conceitos só se dá pela própria experiência com a linguagem, com sua precariedade em apreender o inconsciente. O inconsciente é uma linguagem que só pode ser verificada nos momentos em que o sujeito encontra a impossibilidade de acessá-la de modo integral. Os atos falhos, atualizações do inacabamento das construções realizadas, demonstram que a verdade se presentifica de modo contingente, como um flash que “surpreende” o sujeito.
. Isso implica, então, que o modo de abordagem do real que a psicanálise revela é inédito no campo científico. Esse modo do real aparece pelas bordas do que foi estabelecido como linguagem com a qual tentamos concretizar uma comunicação. A ciência progride pela tentativa de escrever, colocar em letras e fórmulas o real a ser controlado, previsto e manipulado. Ela opera sobre o real pela manipulação dessas fórmulas, e os protocolos utilizados nas pesquisas padronizam os procedimentos, tornando-os universais, para que os efeitos sejam válidos para todos os sujeitos. Há um saber no real que possibilita este procedimento. Esse saber é traduzido pelas leis científicas que, evidentemente, não fazem nenhum sentido, pois estão, necessariamente, subtraídas de qualquer desejo.
. Já a psicanálise, exatamente porque pretende incluir o sujeito no discurso da ciência, revelou que o real aparece como trauma, como um excedente em relação ao que se organizou como linguagem. Isto é, há um excesso de investimento que se mostra como fuga do sentido, como o que derrapa do que se escreve na constituição do aparelho psíquico. O real aparece, assim, como fuga do que se inscreve como saber (MILLER, 2001).
. O sujeito fala e produz a escritura constitutiva do aparelho psíquico, mas denuncia haver um excedente que parasita o que se organizou como linguagem do inconsciente e que escapa à apreensão da escrita. A tática do analista visa a diminuir justamente a distância entre o enunciado e a enunciação, de modo que o ato impeça a fuga do sentido. O sintoma é uma forma de lidar com essa fuga, arranjando esse conjunto de elementos díspares, designado por Freud como solução de compromisso entre várias exigências pulsionais. O sintoma é, então, um retorno da verdade. Ele mostra que há um real insuportável e, mais importante, embora pareça óbvio, mostra que há sujeito. Assim, um sintoma pode ser aparentemente idêntico para todos os sujeitos, como um TOC, por exemplo. Porém, o sentido é contingente, particular a cada um. Não existe uma maneira de fazer um protocolo psicanalítico!
. Lacan nos lembra que talvez ocorra o mesmo na natureza, que ela fale a seu modo. Ele se pergunta, por exemplo, se a poluição não seria um sintoma a indicar a presença de um trauma, um excedente na manipulação das fórmulas que definem o real. Pode ser o modo da natureza se pronunciar e devemos aprender a ler as conseqüências de nossas intervenções científicas.
. É importante frisar, então, que Freud mostrou que o sexual é o real com que a psicanálise lida, por se constituir como impossível de se escrever, mas cada sujeito cria um arranjo para lidar com essa impossibilidade.
. A psicanálise se constitui, então, como um método que não se apóia em uma metalinguagem, no uso de fórmulas que definem e manipulam o real, como pretendem as terapias ditas científicas. Ela visa à apropriação do que é dado pelo Outro, mas de modo singular. Ela visa, assim, à subjetivação, à invenção de modos alternativos e singulares de lidar com a verdade, já que o sentido de cada sintoma é único, mostrando a presença de um sujeito. Suturar o sujeito através de uma linguagem exterior a ele seria, exatamente, eliminar o sujeito, ao reduzí-lo a objeto do saber. Insisto mais uma vez que a “verdade para a psicanálise não é, então, a do aparato simbólico construído, mas exatamente a impossibilidade de o sujeito se representar nesse saber, seja na pesquisa clássica, seja na associação livre” (PINTO, 1999).
. A política de pesquisa em psicanálise deve ser também coerente com seus princípios éticos. A constatação de que a psicanálise não deve procurar o abrigo da ciência para sobreviver em uma época de exclusão do sujeito não significa que ela deva se isolar do campo científico, ou se manter em uma posição histérica de denúncia dessa exclusão na mestria dos discursos, seja o da ciência, seja o universitário. Ao contrário, a psicanálise deve participar conjuntamente de esforços de pesquisa, contribuindo para mostrar de que maneira o alinhamento do sujeito com a causa de seu desejo pode redefinir o peso dos fatores em jogo no seu sofrimento.
. Por que recusar a escuta como instrumento de pesquisa? Por que não obter indicações da presença do discurso do mestre, mesmo que não adotemos as táticas clínicas que retifiquem a posição do sujeito em relação aos ideais do Outro? É claro que ela deve manter suas características específicas, dentre elas o fato de que aqui o pesquisador se localiza como um analisante. Ele está em transferência, movido pela fala do entrevistado ou pelas lacunas de um texto. O pesquisador está em suposição de saber no momento de obter seus dados e construir seus relatórios de pesquisa. Diferentemente da função de conduzir uma análise, ele participa como alguém que produz saber a partir de um enigma, que levanta problemas e tenta soluções teóricas para dar conta dos dados encontrados com sua escuta. O pesquisador está fora da função de sustentar a causa do desejo para um outro. Ao contrário, o tema da pesquisa ou o texto teórico é que estão no lugar da causa de seu desejo, movendo-o, de modo análogo ao que se passa com um analisante.
. Confundir esses lugares tem conseqüências complicadas na clínica. O caso do “Homem dos Lobos”, por exemplo, pode esclarecer o que acontece com o analisante, quando o desejo do analista se confunde com o desejo do cientista. Freud sancionou o saber do Outro e, ao expor o saber, abortou o trabalho de elaboração do paciente. O trabalho de elaboração deveria continuar através da constância pulsional que não cedia, de modo a permitir o franqueamento em relação à causa do desejo ou alcançar uma maneira possível de viver para aquele sujeito. Freud acabou por impedir a construção singular do paciente, em favor do saber de sua ciência. Ele atuou como cientista, ao transformar o analisante em caso de prova de seus argumentos teóricos, impedindo a solução contingente.
. Não cabe aqui discutir aspectos da formação do pesquisador em psicanálise, mas é importante deixar claro que se trata, assim, de alguém em função de analisante, que passa ou passou pela psicanálise pura, isto é, que vivenciou a experiência de linguagem marcada pelo trabalho de rotação dos discursos. Trata-se de alguém que verificou, na própria pele, que todo conceito porta um inacabamento, uma precariedade em apreender a verdade. Assim sendo, a pesquisa deve também levar em conta que pode ser mais importante subjetivar a teoria do que demonstrar o rígido encadeamento sistemático dos conceitos e o conseqüente formalismo acadêmico (MILÁN-RAMOS, 2005). A sua política não permite acatar os padrões de julgamento científico condicionados por uma razão que se legitima pela naturalização dos seus dispositivos. Também na pesquisa a psicanálise é politicamente incorreta, pois o discurso dominante insiste em padrões de procedimentos de pesquisa, como se naturalmente houvesse apenas um modo de produzir saber. Não se trata, portanto, de fazer pesquisa adulterando sua singularidade, para se encaixar na razão dominante. A psicanálise deve, ao contrário, manter seu lugar de exceção dentro do campo científico, mostrando com o mesmo rigor das ciências que é exatamente a angústia da desestabilização dos conceitos, das lacunas teóricas, o que coloca o sujeito em movimento, como acontece com um analisante. A partir dessa precariedade do funcionamento fálico é que o analisante/pesquisador pode deixar os significantes trabalharem e permitir o aumento das opções de escolha coerentes com as formas de aparecimento da verdade.
. Mantendo-se no horizonte a perspectiva da política adotada na clínica, podemos concluir que o esforço de pesquisa deve se centrar no questionamento do poder do significante em cristalizar realidades e identidades aparentemente inabaláveis. Esse significante é chamado de mestre por sustentar um saber que se apresenta como inequívoco, como “um fato que fala por si mesmo”, um fato que portasse a verdade sem qualquer questionamento. Assim, a política que estamos propondo para a pesquisa é a indicada pelo discurso do analista: a de entrar no debate com os outros discursos, de modo a demonstrar o poder do significante até um ponto em que sua mestria possa ao menos ser vislumbrada.
. Podemos concluir, assim, que a política de pesquisa em psicanálise busca alcançar dois objetivos. O primeiro se refere à legitimação da particularidade da vocação científica da psicanálise. Tomando a situação de psicanálise pura como referência, podemos dizer que ela se legitima impondo sua singularidade diante dos ideais acadêmico-científicos. O segundo objetivo enfatiza que, mais do que dominar um conjunto de dados ou uma teoria, o pesquisador renova o modo como incorporou a teoria a partir de cada pesquisa realizada de maneira coerente com seu método. Ao verificar a inexistência de uma linguagem que dê conta de enunciar a verdade de modo integral, seja se submetendo a uma psicanálise, seja como pesquisador, resta ao sujeito seu lugar de exceção em relação aos ideais do Outro. Como afirmou Freud, concluindo seu relato sobre o pequeno Hans: “nosso jovem investigador simplesmente chegou um pouco cedo à descoberta de que todo o saber é um monte de retalhos, e que cada passo à frente deixa atrás um resto não resolvido” (FREUD, Vol. X, p.107). Ou seja, resta a impossibilidade de um saber sobre a relação sexual. Passar pela experiência da linguagem em uma análise é o único modo de verificar tal castração. Do mesmo modo, cada pesquisa pode atualizar a castração, favorecendo, a cada vez, a subjetivação da teoria e do método, além de depurar o desejo de se colocar em posição de ler o inconsciente.
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